sábado, 19 de abril de 2008

Memória de mim


PS: A foto de hoje não é minha (DePrimeAbord). O Maracujá pediu-me uma foto de uma águia e eu não consegui tirar, mas como ele queria pus esta que encontrei no Google. O autor, desconheço.



O sol tinha-se posto e era noite de lua cheia.
Vivia-se uma Primavera fria, a primeira de todas.
Recolhi-me ao aconchego do meu ninho.
Sentei-me à lareira e enfrentei a escuridão.
Só a luz do fogo me iluminava.
Passaram-se horas, dias, anos, não sei...
A mente como o fogo, guiava-me pelas serpenteantes ruas do meu pensamento...
Quando o derradeiro fogo era somente cinza, já eu era outro alguém.
A minha impulsividade e energia eram agora sabedoria e calma.
Precisava de uma luz mais ténue, menos efusiva e irrequieta.
Então abri as minhas asas e voei...
Também aqui me perdi pelas eras deste mundo.
Poisei numa jovem caneleira em flor num qualquer jardim de um qualquer lugar.
Ali senti em toda a plenitude o abandono do vigor da juventude...
Eu já tinha sido como aquela caneleira, jovem, belo e alegre.
Recolhi a alma, apreciei aquele aroma e lembrei-me dos longínquos tempos em que percorria os céus e, serenamente, apreciava toda a beleza da Terra.
Tinha vagueado por quinhentas vidas de Homem e nunca tinha sentido semelhante aroma...
Ali fiquei até a doce vida abandonar aquela caneleira que se tornara rígida e quebradiça.
A Natureza a seguir o seu rumo.
Ergui então os meus olhos negros para o céu e vi algo como uma montanha, belo como o mar, sábio como o tempo.
As minhas asas envelhecidas voaram outra vez em direcção ao desconhecido numa aventura jovial, uma antítese de mim.
Era uma árvore...
Eu que já tinha visto todas as árvores, minhas amigas de viagem e de contos nóctivagos, não consegui reconhecer aquela...
O olhar turvava-se-me, pensava eu...
Eu que tinha visto a chegada dos primogénitos estava pela primeira vez surpreendido.
Poisei então nela.
Era uma frondosa faia, a mais bela, sábia e velha de todas as árvores...
As suas folhas eram de três cores já esbatidas e cansadas.
Dela provinha uma luz comparável à da grandiosa lua.
Poisei no seu ramo mais alto e os meus olhos ganharam outra vida.
Contaram-se histórias sobre mim e sobre a derradeira árvore...
Éramos apenas um rumor esquecido, uma história de caminhantes, um verso de poetas errantes.
As Primaveras sucediam-se até que surgiu uma tão fria como a primeira.
E eu pressenti o fim.
Mas a minha percepção do mundo era agora diferente.
O fim era o começo de mais uma etapa...
No final daquela Primavera o cheiro das caneleiras voltou, inundou-me o espírito e aqueceu-me a alma.
Então percebi, abri as asas e deixei-me levar...

3 comentários:

armando s. sousa disse...

Continua, sempre, a poisar no "ramo mais alto" e absorver "todos os aromas" possíveis, esse é o primeiro passo, para uma vida ímpar.

Um abraço, maracujá.

Raul Martins disse...

"O mito do eterno retorno!"

Depois de cada jornada surge sempre uma nova etapa. E não podes fugir ao chamamento da vida. Continua a abrir as asas e a voar...

Anabela Magalhães disse...

A fotografia ilustrou maravilhosamente o texto.
Parabéns.